15.4.09

das pequenas certezas

Dois meses atrás, eu estava na Itália e era uma pessoa cheia de certezas. Sabia, por exemplo, que eu não teria como escapar da gripe catastrófica que eu viera encubando, privando o meu organismo de alimentação adequada e submetendo-o a intensa atividade física (em sentindo amplo) todos os dias. Foi o que aconteceu.
Mas eu também podia afirmar que chegaria no Brasil e estaria quente. Estava mesmo. Na realidade, fazia tanto calor que eu sentia que era seguro sair de casa de vestido e sandália, ainda que eu tivesse que passar o dia todo fora e só voltar à noite, porque o vento que soprava às sete da noite seria um alívio e não um problema.
Eu sabia que teria um emprego para pagar as minhas contas e que voltaria a ter obrigações acadêmicas e sociais.
Com certeza este seria o meu último ano de faculdade (incluso no pacote tudo o que ela proporciona), o que me fazia firme na ideia de que eu ainda tinha um ano inteiro para respirar antes de encarar a realidade de ser bacharel e todo o resto.
Hoje, depois da exposição da comissão de formatura, eu tive certeza de que eu vou me formar. Não foi bom. Sentei na arcada com o meu livro e não consegui ler nem 3 páginas, pensando nisso.
A conclusão a que eu cheguei foi a de que a gente precisa de algumas certezas, das pequenas.
Porque hoje eu não me sinto mais segura para usar uma saia sem levar blusa e sem pôr meia. Não precisa ser nenhum gênio para saber que isso seria ridículo.
E eu estou gripada de novo, sem nenhuma explicação, sem ter contribuído proativamente para isso de forma alguma.
Descobri que só ter um trabalho não é suficiente para pagar as minhas contas e que, não importa quanto tempo eu passe em casa, minha mãe sempre quer que eu esteja aqui, e reclama da minha ausência.
Daí eu lembrei que eu e o Neto uma vez imaginamos um mundo no qual o vento seria um só, e sopraria sempre na mesma direção, digamos, de leste para oeste. Assim, minha tia da Inglaterra poderia me mandar um e-mail dizendo “hoje está ventando aqui. Prepare-se, daqui a dois dias, vista um chapéu ou prenda o seu cabelo antes de sair de casa. Beijos, tia”.
Assim, no dia que ventasse, as pessoas que tinham amigos no leste ou que assistiam as notícias sobre o tempo sairiam de casa de chapéu, ou com os cabelos presos em firmes coques, e se deleitariam com as roupas e penteados impróprios dos mais desavisados.
Também, todas as edificações teriam que ser reforçadas na sua face leste, e os problemas com a navegação seriam sensivelmente reduzidos.
Tudo hipotético, óbvio, porque chapéu saiu de moda há muito tempo e quase ninguém mais que navega ainda precisa do vento.
De toda sorte, acho que isso seriam certezas demais. Não precisamos de tantas.
Mas aquelas primeiras que eu descrevi me são absolutamente necessárias, até porque são as únicas possíveis, já que eu não tenho como garantir que eu vá ser uma profissional bem-sucedida, vá encontrar o meu chinelo velho e ser uma boa mãe.
E fica aqui o meu protesto por elas terem sido tiradas de mim, com o clima instável, o acúmulo injusto de despesas, a crescente demanda acadêmico-social e tudo o mais.
O que me sobrou hoje foi a certeza de que aquela prova de criminologia de amanhã não vai se responder sozinha e de que a festa de formatura, embora tristíssima, vai ter uma infra-estrutura arrasadora. No mais, só incógnitas e necessidade de terminar este post para estudar.

9.4.09

poeira no cérebro

Começou quando eu descia a rua de casa e, no modo aleatório das minhas músicas, tocou uma de que eu gosto muito.
Isso criou uma obsessão.
Eu cheguei em casa, liguei o teclado, pedi ajuda, procurei na internet. Decidi que ia conseguir tocar aquela música, não importava o quanto me custasse.
E, no meio do processo, eu comecei a experimentar os confusos sinais do cansaço mental, quando a pessoa erra frases que já estava conseguindo tocar perfeitamente e não é mais capaz de aprender coisa alguma.
A solução mais eficaz - dormir - não era opção naquele momento. É de obsessão que estamos falando.
A outra possibilidade era tocar uma música conhecida, para o cérebro relaxar. Então me veio Lua Branca, da Chiquinha Gonzaga, à cabeça.
Irritante é que, por mais que eu saiba tocar essa música, naquele estado, eu não lembrava das sequências. Não dava. Fui então procurar o livro que contém as partituras. Não achei.
Devia estar no armário junto com os demais livros que nós trouxemos do outro apartamento, há quase 3 anos, quando mudamos para cá, e que nunca desempacotamos.
Lá fui eu, enfrentar nuvens de poeira, a claustrofobia inerente ao conceito de “banheiro de empregada em apartamento da classe média”, o incômodo da lâmpada na cara e tudo o mais que ir até aquela despensa me proporciona, porque eu estava obcecada e precisava conseguir relaxar para depois conseguir tocar direito.
Abri a primeira caixa de livros. Nada. Abri a segunda. Livros que eu sei que minha mãe quereria. Separei para ela. Abri a terceira. Livros que eu tinha separado antes de me mudar, para ler assim que a gente desempacotasse tudo.
Odiei encontrar tudo aquilo, porque me fez lembrar de um tempo em que eu era a pessoa que achava que O Capital era leitura prioritária, que não tinha ideia de que ia acabar se perdendo em handouts para entregar, leituras da faculdade e livrinhos para se distrair.
Quando eu vi Anna Karenina, eu lembrei não só que eu já fui a menina que tinha tempo para ler sobre o vestido verde-bandeira-com-decote-generoso-que-insinuava-os-fartos-porém-formosos-seios-de-Ánuchka-e-babadinhos-de-renda-cuidadosamente-costurados-pela-irmã-caçula-da-protagonista, mas que também zombava internamente da pobre Anna, por acreditar que solidão como a dela não existia na idade que ela tinha.
E quando eu vi Sartre, eu lembrei da minha mãe dizendo que eu tinha que esperar a hora certa para lê-lo, senão eu ia odiar e ele “é legal”.
Pensar nisso tudo me fez ver o quanto eu tenho me escondido dos meus medos lendo e assistindo Crepúsculo para não ter que encarar que tem gente morrendo de fome, que ainda existem pessoas oprimidas em razão da cor, da raça, da forma como exercem a sua sexualidade.
Que eu tenho me afastado dos meus sentimentos, baixando uma infinidade de séries de comédia que me fazem dormir, para eu não ter que pensar que eu estou mais sozinha até do que a Anna Karenina, porque ela pelo menos tinha aquele filho meio viado dela lá, o Sergei, se não me engano. (Pode ser que ele não seja gay, e eu gravei assim por causa do nome. Eu prometo que isso não é um preconceito latente, é só o modo errado e esquisito como o meu cérebro funciona.)
Pode parecer Sartre me influenciando da maneira errada, mas eu juro que não é, porque eu mal comecei a ler.
É Sartre me influenciando do jeito certo, caindo em cima da minha escada mesmo quando eu não estava procurando por ele, como que para me dizer: é hora de ler Sartre.

(Para os mais desavisados, isso quer dizer “você é adulta, vai lá, encara, e para de choramingar!”)